sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Água de Colónia (continuação)

Cristina tinha o seu fado de eleição. Por vezes trauteava outros, mas o seu preferido e aquele onde conseguia pôr todo o seu sentimento era o "Fado de Lisboa". Fora escrito pelo seu já falecido tio José, marido de Mariana. Era embarcadiço e o seu corpo desapareceu num naufrágio precisamente na última viagem marítima que ia fazer antes de se reformar.

"Teu corpo estendido
Em cada colina
Por ti estou rendido
Singela menina
Que banhas no rio
Todo teu casario
Vejo no alto teu coração
Que nos traz a emoção
De saber que do castelo
Tudo teu é mais belo

Teu nome Lisboa
O sentimento saudade
Que meu corpo apregoa
Se um dia não há-de
Ser só mais um dia
Sem a tua magia
Teu cheiro Lisboa
Até a Madragoa
De castanha assada
De ginjinha e sardinhada

Preso no teu encanto
Tens no Tejo o teu manto
Teus míticos locais
Que se escondem em cada canto
Ora nos palácios senhoriais
Ora nestas palavras que te canto
E do castelo até ao cais
Te vejo estendida Lisboa
Por entre cada colina
E só me magoa
Perder-te, menina.

Teu nome Lisboa
O sentimento saudade
Que meu corpo apregoa
Se um dia não há-de
Vir passar a ser
O fim de tudo, Lisboa
Se deixar de te ver
Banhada no rio
Que te abençoa!

E tu, singela menina
Não apagues teu passado
Não seja tua sina
Ter esse tesouro afogado
E nas mágoas do teu povo
Não venhas também a naufragar
Que só por ter algo de novo
Não te irá atraiçoar."

Entoava Cristina, sempre terminando com uma pequena lágrima, que só eu conseguia ver, a pender-lhe no olho esquerdo.

(continua)

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Água de Colónia (Continuação)

Os seus irmãos, mais novos, viam nela uma segunda mãe. Ou mesmo a primeira, visto que essa, Dona Madalena, trabalhava noite e dia para poder sustentar a casa. Teve pouco tempo para ser mãe, mas no pouco que teve foi a melhor mãe que podia ser. Sabia que podia confiar em Cristina para a substituir. E as vizinhas também davam uma ajuda. Dona Mariana, tia de Cristina e irmã de Madalena nunca tivera descendentes e via nos seus sobrinhos o seu maior tesouro. Era doméstica e tinha uma vida mais desafogada que a irmã Madalena e podia dispensar-lhes o tempo que esta não podia. Também eu fora adoptado por Dona Mariana. Apertava-me as bochechas cada vez que me via lá na rua. Passava a vida a querer oferecer-me gelados, gomas ou rebuçados como se eu ainda fosse um miúdo, um daqueles lá da rua que agora escasseavam. A população do bairro estava envelhecida. Os jovens adultos procuravam casas e bairros mais modernos. Dona Mariana não entendia porque isso acontecia. "Quando miúdos tiveram tudo de nós. Carinho, respeito, admiração e comida e agora abandonam-nos como lixo!" - dizia-me indignada. Tive de concordar, mas guardei-o para mim. "Eles não se esqueceram de si. Foram apenas procurar vidas melhores." - disse-lhe eu tentando mantê-la calma, mesmo sabendo que tinha toda a razão. Dona Mariana não se podia enervar. A sua saúde era instável e qualquer outra instabilidade no seu estado poderia ser crítico. Morava no Nº 49, dois prédios acima de Cristina e os seus sobrinhos iam vê-la todos os dias e já sabiam que se quando chegassem ela não estivesse em casa podiam comer e beber no café do rés-do-chão. O Sr. António, dono do café servia-os e punha na conta da Dona Mariana. A início não gostava muito de o fazer, mas essas ordens foram-lhe dadas por ela. Vezes havia em que nem cobrava comida aos miúdos. Sabia das dificuldades, ainda que apenas ligeiras, pelas quais passavam.
António tinha um pequeno café ao jeito de tasca onde todos se juntavam. Os daquela rua e das circundantes. Era o café mais próximo e simpático das redondezas. Cristina ia lá cantar em noites de fado, por vezes. Não tinha uma voz muito bonita, mas era "a mais sentida e genuína de todas as vozes" - diziam os seus fãs. Era engraçado vê-la cantar. Aquela que parecia sempre solta e desenvergonhada revelava toda a sua timidez. Isso não parecia afectar a sua actuação, ou talvez afectasse, mas de forma positiva. Talvez fosse aquela toda a sua genuinidade, a timidez.

(continua)

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Água de Colónia (Continuação)

O seu jeito delicado era notório e todos a tinham em boa conta. Quando passeava pelo seu bairro, Cristina era brindada com sorrisos a cada passo que dava. As pessoas nutriam por si imenso carinho e admiração. Viram-na crescer e aprender. Era filha daquele bairro. Um bairro típico da capital. Casas pequenas encimadas umas pelas outras. Estendais a pender das janelas que quase tocavam as casas da frente. Mesmo em suas casas as pessoas conviviam de forma assídua e rotineira com os vizinhos. As janelas eram próximas dadas as ruas apertadas de um só sentido. As varandas e as escadarias que adornavam e ornamentavam as pequenas casas e prédios eram todas dotadas de vasos com flores e ervas aromáticas. Não faltavam a salsa e os coentros, nem tão pouco as rosas e os cravos. Casas havia ainda que eram vestidas por buganvílias com hortênsias a seus pés. Alguns poderiam achá-lo um exagero, mas o que é certo é que dava mais vida e cor ao bairro. Isso e os constantes bandos de crianças, outrora em maior número, que subiam e desciam a rua ora para brincar, ora para fazerem recados a suas mães e vizinhas. Cristina foi uma dessas crianças. Era a mais responsável, simpática e predisposta a ajudar no seu grupo de infância. Quase todas as suas vizinhas aproveitavam os seus préstimos para lhes fazer recados. E as que não aproveitavam era por falta de tempo ou por vergonha de pedir. Cristina não se importava. Gostava de ser e de parecer mais adulta que os restantes amigos. Descer a rua com sacos na mão vinda da mercearia da Dona Rosa ou subir vinda do talho do Senhor Armindo na rua de baixo eram as suas brincadeiras preferidas. E ainda costumava ficar com o troco para guloseimas ou para ajudar a sua mãe no pouco que pudesse. Nunca teve grandes ambições no que diz respeito a brinquedos. Apenas queria poder manter aquele ar responsável que fazia com que todos os seus amigos a respeitassem e quase idolatrassem. Era sempre a líder do grupo. Não voluntariamente, mas quase sempre por indicação de outros ou por falta de capacidade dos restantes para assumir responsabilidades.

(continua)

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Água de Colónia (Continuação)

Aquela água perfumada caía no seu corpo como peixe na água. Há pessoas que têm o seu próprio cheiro característico. O seu era aquele. Que ao mesmo tempo que a perfumava e caracterizava dava um toque acetinado na sua pele. Macia. Que eu tanto gostava de tocar. - "Ainda gosto!" - pensei eu. Cristina deliciava-se usando aquela água, e eu, deliciava-me por vê-la extasiada e feliz. Não saía de casa sem fazer aquele odor tocar a sua pele. "Irá acompanhar-me para sempre." - dizia ainda, mas nunca liguei muito ao seu entusiasmo. Menos ainda depois de me ter dito o mesmo e de me ter abandonado. "Trocou a sua Colónia de sempre por uma nova Colónia." - pensei eu.
Cristina não era de muitas palavras, mas os seus actos repentinos e fiéis aos seus sentimentos deixam-me perceber tudo o que Cristina deixava por dizer. Desde cedo que a conheci bem. Naquele dia, da breve e insignificante despedida, Cristina levara uma máscara para tapar todo o sofrimento e dor que aquele momento lhe estava a causar. Eu tinha a certeza. Só podia ser isso. Na altura pensei que tinha passado a ser uma pessoa fria ou que nunca a tinha conhecido ao certo, mas depois de muito reflectir descobri que estava disfarçada. A sua essência não era aquela. Nem uma lágrima, nem um tremular de voz, nem um pestanejar de olhos sentido e sincero. Tudo foi fachada naquele último encontro.
Cristina era uma menina singela e delicada. Os seus tratos eram meigos e ternos. Era de uma simplicidade tão pura que qualquer dos seus gestos faziam transparecer aquilo que realmente significavam.

(Continua)

domingo, 2 de outubro de 2011

Água de Colónia

Os devaneios que me apoquentavam com as palavras presas em mim. As feridas incuráveis das memórias revividas. Naquele dia tudo se repetia. Os cruzamentos de olhares com os suspeitos do costume. As trocas de sorrisos com os habituais seres. O mesmo odor, já característico, de sempre naquele local. Os sonhos inalterados. As promessas intactas, ainda que adiadas. Os desejos, alguns sombrios e obscuros, permanecem.
Viver. Viver para sempre na eternidade daquele momento. "Um momento único e irrepetível." - diziam eles e com razão, achava eu.
Cristina saíra há pouco da minha vida. Havia ido para o estrangeiro trabalhar. "Colónia! Ela foi para Colónia." - disse-me sua mãe. Depois de alongada pesquisa descobri que é na Alemanha. Com a pressa da despedida nem percebi o que foi fazer nem para onde ia. Não temos falado desde então. Aguardo uma carta sua, talvez ainda de amor, esperava eu. Uma carta de amor com a despedida que ao menos merecíamos ter.
"Colónia!" - exclamei eu diante do espelho do carro. "De Colónia só conheço a água!" - e continuei. Aquela água de colónia que um dia lhe ofereci e que ela não mais deixou de usar. "Não há outro odor no mundo que se aproxime tanto de mim como este." - disse-me.

(Continua)